Saint-Jean-Pied-de-Port
Roncesvalles
Roncesvalles
Expectativa e ansiedade se confundiam. Dormira mal e acordara de hora em hora durante uma interminável madrugada, muitas vezes em sobressalto. O véu negro e o absoluto silêncio que se abatiam sobre a estalagem produziam momentos de conflitos e de interrogações. Havia razões de sobra para este turbilhão de sentimentos, e eu sabia disso.
Aquela não era uma noite qualquer. Afloravam-me à mente as implacáveis perguntas: conseguiria alcançar Santiago de Compostela caminhando? ou quem sabe, seria tentado a desistir por insistência dos meus espíritos conspiradores?
Depois de um tempo de hesitação, decidi dar um basta em pensamentos que não me proporcionavam a serenidade de que tanto desejara alcançar no Caminho do Apóstolo Tiago.
Levantei de estalo e, pouco antes das sete horas, daria início ao ritual que se estenderia pelos próximos vinte e oito dias. A completa escuridão ainda inundava o ambiente. Sob a cama alcancei a lanterna que projetava um fio de luz. Vestira-me e cuidadosamente arrumara a mochila, sufocando o estalido seco do plástico que envolvia cada peça de roupa. Afinal, era quase um contrato de respeito ao peregrino ao lado. O cômico dessa história é que, por algumas vezes, e durante as etapas seguintes, quase todos, mergulhados no negrume da madrugada, fariam a mesma coisa simultaneamente.
Às sete e meia, mochila de quase onze quilos às costas, abri a porta do refúgio, e antes que vislumbrasse qualquer paisagem, senti o suave frescor da manhã tocando agradavelmente meu corpo. Fechei os olhos por alguns instantes. Tive a sensação de estar sendo apoderado de uma força desconhecida, segurando-me pelas mãos e conduzindo-me até à primeira marca do Caminho. Não via meu guia, mas podia senti-lo. |
Ansioso, passei em frente à recepção do albergue situado próximo ao alojamento para manifestar minha gratidão aos hospitaleiros pela acolhida no dia anterior. Encontrava-se fechada. Senti-me frustrado. Deveria tê-lo feito no dia da chegada. Mas não me culpei por isso.
Na tarde anterior, o albergueiro havia me dito sobre a possibilidade de se fazer o percurso, tanto pelo traçado que acompanha a rodovia asfaltada - Carretera N-135 - via Valcarlos - como pelo caminho dos Montes Pireneus, a Rota de Napoleão. A opção primeira me levaria confortavelmente e sem muitos sacrifícios a Roncesvalles enquanto que a segunda exigiria um grande esforço físico. Como recompensa, esta me daria a possibilidade de caminhar sobre a autêntica história do Caminho de Santiago, como já fizeram milhares de peregrinos que há séculos por ali passavam, desde os tempos medievais. Assim decidido, por estes verdes montes também resolvi me lançar.
Não conseguia conter a emoção do início. O coração palpitava acelerado. O primeiro café foi apressadamente engolido numa cafeteria distante cem metros da estalagem. Era uma manhã fria e nublada, de uma cidadezinha bela e silenciosa que eu, arrebatado, pouco observei.
Desci a ladeira da estreita ruela ouvindo o seco som das minhas passadas sobre as pedras irregulares. Atravessei a ponte sobre o rio Nive e, sôfrego, rumei desenfreado na direção que as marcas me indicavam. Eram representadas por um pequeno retângulo com dois traços em paralelo, um verde, outro branco. É como se dá a sinalização nos primeiros quilômetros da rota Jacobea.
Acabava de ser iniciado. Sentia-me agora um neófito da confraria de Santiago. Estava finalmente pisando o solo dos campos das estrelas. A incontrolável ansiedade transformou-se inexplicavelmente em momentos de absoluta paz. Em minutos transmutei do estado de aflição para o gozo da serenidade.
A mim fora concedida a prerrogativa de estar ali; de onde, a partir daquele momento, poder usufruir, em sua máxima plenitude, de todas as sonhadas maravilhas do Caminho e de buscar respostas para as questões que vinha fazendo ao longo da vida.
Nos primeiros instantes, parti numa desenfreada busca de identificação do espaço à minha volta, do odor das flores e da relva, do cheiro do outono no ar, da profusão de cores e de tantos outros elementos que compunham tão exuberante paisagem. A impressão que tinha era a de ter adentrado outro mundo, um mundo especial e único, misterioso, sagrado.
Pensava e agradecia a Deus por ter tido a oportunidade de estar ali, de poder viver e estar absolutamente livre para pensar, rir e chorar. Mesmo que por um dia fosse, já teria valido a pena.
Os primeiros quatro quilômetros foram percorridos em cerca de uma hora e foram sem dúvida os mais árduos de todo o caminho. Restavam ainda muitos quilômetros de duro ascenso. Àquela altura, dominado pela exaustão, um poste servira-me de apoio. Estava ofegante, batimento cardíaco nas alturas, zonzo e vertendo suor por todos os poros. Um homem combalido, física e espiritualmente. Uma terrível constatação para quem imaginava que o cansaço de mim se apoderasse apenas quando despontasse o entardecer. |
Começara a entender que persistência e paciência seriam princípios fundamentais para a concretização dos meus sonhos, ou muito mais que isso: o de poder continuar respirando. E para piorar, além das forças, a água do cantil esvaía-se rapidamente.
Eu seria suficientemente forte para seguir adiante?
Nesse momento as inquirições atropelavam as respostas. Compreendia porém que capitular diante desse primeiro obstáculo representaria o atestado definitivo de minha impotência diante de meus projetos de vida. E para mim já estava muito claro que a provação já havia começado.
A vinte metros dali, alguns peregrinos tomavam café e descansavam em uma das poucas casas à margem da estrada. Mauro, de São Paulo, e Francisco, do Balneário Camboriú, eram os mais comunicativos e centralizavam a conversa.
Depois desse dia, nos veríamos apenas mais uma vez.
Foi o meu primeiro encontro com peregrinos. Uma aproximação natural, em que cada um parece doar um pouco de si. Podia ver em seus olhos a ânsia em partilhar a grande descoberta, o privilégio de trilhar um caminho farto de lições e de tão precoces revelações.
- É a segunda vez que faço o Caminho, disse-me Mauro, e a subida termina só daqui aproximados vinte quilômetros.
- Estou morto, falei desoladamente.
- Que nada, vá em frente, você vai conseguir, emendou.
A solidariedade e o estímulo foram uma das primeiras marcas do Caminho de Santiago.
Condição física razoavelmente restabelecida, ritmo agora menos intenso, retomei a caminhada.
Foram longas horas, longas subidas. Cruzei infinitas vezes com introspectivos moradores dessas montanhas e de quase todos recebi um afável bonjour. Um singelo gesto, mas que produzia energia e aliviava tensões.
Busquei a solidão e a encontrei. Exausto, tive que interromper a caminhada por muitas vezes. E nessa sucessão de acontecimentos conheci o paulista Jorge Luiz. Andava taciturno e lentamente. Um pequeno cajado marcava seus passos miúdos. O rubor de sua face revelava intenso sofrimento. Trocamos algumas poucas palavras e nos despedimos com um até breve.
Um par de horas havia se passado quando deparei-me com a carioca Nane. Um largo e espontâneo sorriso, quase permanente, brotava de seus lábios. Cantarolava e balançava os braços cruzando-os ao alto. Cheguei a imaginar que agradecesse ao Criador pela vitória da vida e pelo privilégio do Caminho.
Meu propósito, desde a preparação, sempre fora o de realizar o caminho solitariamente, buscando a reflexão como forma de desatar os nós que emaranhavam minha existência. No entanto, a interação com outros peregrinos é inevitável. Ela ocorre mansa e espontaneamente. É nesses momentos que expomos nossas ansiedades, nossas expectativas, partilhamos de nossas experiências e abrimos os livros de nossas vidas.
Passava pouco do meio-dia e um intenso sol varria todo o vale, quando fizemos a segunda parada para o descanso e o "almoço". Eu, Nane e Ivaldir partilhamos pão, bolacha e presunto. Pouquíssimo para três andarilhos varados de fome. Não havia o que fazer. Éramos de fato "peregrinos" de primeira viagem.
Havia ascendido quase quinze quilômetros, e o cenário que se formara à minha passagem era, ao mesmo tempo, de beleza e de melancolia. Meus olhos voltaram-se para o sopé das montanhas. Ali, pequenas casas que há algum tempo ao lado passara, eram agora minúsculos pontos coloridos incrustados no imenso verde espalhado por todo o vale, perdendo-se no horizonte de minha visão.
No cimo dos montes, rebanhos de carneiros pastoreavam impassíveis à minha passagem. O absoluto silêncio destas paragens era, de quando em quando, quebrado pelo tilintar das suas sinetas. Um indescritível paraíso.
Arrebatado com as imagens ao meu redor, regressei aos meus tempos de criança. Parecia estar vendo meus quadrinhos pintados com lápis de cor, com a casinha entre as montanhas e, para que tivessem vida, ao fundo, o sol com seus indefectíveis raios e a chaminé soltando fumaça.
Restabelecido do momentâneo devaneio, retomei a caminhada.
Após quase vinte e três quilômetros de duríssima subida, eu sabia, ou imaginava saber, que os quatro quilômetros restantes seriam facilmente vencidos ou até mesmo pudessem se transformar num bálsamo para o meu corpo "moído".
Às cinco da tarde, tropeçando nas próprias pernas, desemboquei em Roncesvalles.
Ao hospitaleiro do refúgio aleguei razões de ordem espiritual ao preencher uma das primeiras questões do cadastro do peregrino, como aliás fazem a grande maioria dos romeiros. Obtive o segundo carimbo (sello) na credencial e, de banho tomado, saí a andar sem rumo pela cidade de algumas poucas centenas de habitantes.
Roncesvalles é considerada uma das mais antigas localidades de assistência aos peregrinos e da Rota Jacobea. Fundada no século XI, é o marco inicial da província de Navarra e local onde jaz Sancho, el Fuerte, rei dos navarros.
Ao lado do refúgio, a Iglesia de la Colegiatta de Roncesvalles estava mais uma vez pronta para acolher os peregrinos para a cerimônia de bendição. Senti um arrepio quando me veio à mente que esta liturgia vem ocorrendo há oito séculos. Ministrada por cinco sacerdotes alinhados frente ao altar, acompanhavam-nos dois coroinhas. Cânticos gregorianos eram entoados com impetuosidade. Um intenso aroma de incenso tomava conta do templo. Uma celebração da alma peregrina.
Afinal esse era de fato o primeiro dia e tudo era a primeira vez. A catedral, o aspecto medieval de tudo que me rodeava, a acústica perfeita, a cerimônia de intensa ritualística envolviam-me. A atmosfera solene parecia fazer o tempo voltar.
Lembrei-me das tantas vezes que me flagrava dispersivo nos cultos de que participava. No entanto, a celebração da Real Colegiatta arrebatara minha alma.
Ao final da noite, venturosos peregrinos lotaram o restaurante localizado a pouco mais de cem metros do albergue. Era uma noite de íntima confraternização. Conheci os conterrâneos Ciro, Antônio e reencontrei-me com tantos outros que o Caminho já nos apresentara nas escarpas dos Pireneus. Era também nossa primeira "cena". Um caldo de massas, trutas ao forno, algumas taças de vinho tinto e sorvete. Um exagero para os propósitos franciscanos de um peregrino.
Heresia ou não, deixei de pensar nisso. Era apenas uma questão menor diante da magnitude do Caminho. Com a alma enlevada, recolhi-me ao albergue pouco depois das dez horas.
Quem sabe, deitado, eu poderia conceber um balanço daquela jornada primeira. Fui em minutos vencido pelo cansaço. O sono chegou antes que viesse ter respostas às minhas indagações.