Rumo a Espanha - agosto de 2000

Rumo à Espanha - 22 de Agosto de 2000
     As caminhadas diárias de preparação, ultimadas com mochilas às costas, prosseguiam determinadas. De quando em quando paisagens estampando vales, montanhas e verdejantes campos tornavam a expectativa da viagem ainda mais prazerosa e de inevitável comparação com as terras da tão longínqua Espanha, insuflando minha imaginação e fazendo embrenhar-me pelas intrigantes trilhas do medieval caminho.
     Embora cada etapa tivesse sido cuidadosamente planejada, os dias que antecederam a partida foram tomados de irrefreável ansiedade, em que se confundiam estímulo e angústia.
     Os manuais e reportagens, relidos exaustivamente, e as preciosas informações obtidas do médico-peregrino Gilson Zahdi não haviam me propiciado a serenidade que desejara. No entanto, esse estado de espírito, inexplicavelmente, não me incomodava. O período de espera, de alguma forma, havia harmonizado forças desconhecidas.
Imediações de Estella
     No aeroporto, a despedida da família, um nó na garganta e uma indefectível pergunta que até então não fizera: o que estaria buscando em terras tão distantes? Provavelmente percorreria as veredas de Santiago, ora sob a espreita de silenciosas e acolhedoras paisagens, ora sob inclemente sol a queimar minha fronte.
     Dificuldades por certo estariam a me esperar em cada encruzilhada, nos quase inexpugnáveis flancos escarpados das montanhas e nas tantas travessias de perigosos desfiladeiros.
     Quem sabe dormiria ao relento e me alimentaria de fragmentos de pão como fizeram milhares de peregrinos ancestrais?
Eram interrogações em demasia para quem ainda não havia ousado o primeiro passo. Muitas respostas não viriam. Porém, o sábio tempo fizera-me compreender que já não mais as desejava. Constatara haver esquecido de que também vislumbraria outros cenários, onde verdes campinas, o azul celestial, os confortantes raios do sol, o aconchego dos refúgios e a companhia de solícitos hospitaleiros por certo também estariam a me esperar.
     Estas reflexões, talvez por generosidade da alma, davam-me finalmente o alento que buscava: ondularia mais impetuoso que vacilante pelos intermináveis e áridos campos do norte da Espanha.
     O crepúsculo já se anunciava quando desembarquei em Pamplona e a pouco menos de cem quilômetros do ponto de partida do milenar Caminho. A incontrolável ansiedade contribuiu para tomar, juntamente com Ivaldir, o primeiro táxi para Saint-Jean-Pied-de-Port.
     O resultado da pressa é que despendemos o absurdo de onze mil pesetas, equivalente a cento e vinte reais, rateadas em dois, quando o normal é sete mil, e geralmente compartilhado com quatro peregrinos.

Montanha da Galícia  Depois de quase uma centena de quilômetros de muitas curvas e sobe e desce, aportamos em Saint-Jean-Pied-de-Port, já de noite quase posta. Estava ali finalmente a cidadezinha francesa de que tanto sonhara, fincada no sopé dos Pireneus e o preferido ponto de partida do Caminho de Santiago, principalmente dos brasileiros.
     O albergue, espremido entre velhos casarios no alto da rua Citadelle, atendido por hospitaleiros franceses, apresentava-se simples e despojado. Uma casa dotada de minúsculos quartos, mergulhados, quem sabe de forma proposital, na meia obscuridade, e que levavam-me a provar uma agradável sensação de paz interior.
           Nem mesmo o "donativo" de mil pesetas, aliás, o mais custoso de todo o Caminho, nem o dispendioso táxi ousariam abalar a mente e os propósitos tão solidamente voltados para a grandiosa obra que aguardava esse incauto, mas antes de tudo, venturoso peregrino.
     Enquanto o sono não vinha, punha-me a indagar sobre as tantas florestas e montanhas a que me lançara ao longo da vida e das tantas guerras que eu teria ainda que lutar. Mesmo que inexoráveis fossem essas verdades, sentia-me um homem privilegiado pelas generosas dádivas da vida. Algumas virtudes e muitos defeitos, mas em constante viagem interior em busca de respostas às inquietações do espírito. Sentia-me nesse momento encorajado e com forças para enfrentar as intrigantes encruzilhadas do Caminho, física e espiritualmente.
Mergulhado nessa teia de divagações e paradoxos, a vigília enfim terminara. Adormecera em paz e afortunado.
     Dali, da Rua Citadelle n.º 55, eu daria na manhã seguinte o primeiro passo para o Caminho dos meus devaneios e que marcaria o inicio da realização de um dos meus projetos de maior significação pessoal.
Foram dias de intensos combates, vencera homéricas pelejas, sucumbira em outras tantas, e de certeza uma grande lição: um infinito caminho por trilhar.
      Ri e chorei incontáveis revelações, reaprendi a tolerância, o desafio ao medo, o amor, a fé e a coragem. A grande viagem desnudou um homem ainda envolto em mistérios, mas foi-me também generosa ao dar-me a percepção de que os olhos da minh'alma já não se faziam tão turvos como outrora o foram.